Você pode não
acreditar, mas é verdade: muitos anos atrás a terra era um jardim maravilhoso. É
que os anjos, ajudados pelos elefantes, regavam tudo, com regadores cheios de
água que eles tiravam das nuvens. Esta era a sua primeira tarefa, todo dia. Se
esquecessem, todas as plantas morreriam, secas, estorricadas... Para que isso
não acontecesse, Deus chamou o galo e lhe disse: - Galo, logo que o sol
aparecer, bem cedinho, trate de cantar bem alto para que os anjos e os elefantes
acordem... E é por isto que, ainda hoje, os galos cantam de
manhã...
Flores havia aos
milhares. Todas eram lindas. Mas, infelizmente, todas elas eram igualmente
vaidosas e cada uma pensava ser a mais bela. E, exibindo as suas pétalas,
umas para as outras, elas se perguntavam, sem parar: - Não sou a mais linda
de todas? Até pareciam a madrasta da Branca de Neve. Por causa da vaidade,
nenhuma delas ouvia o que as outras diziam e nem percebiam que todas eram
igualmente belas. Por isso, todas ficavam sem resposta. E eram, assim,
belas e infelizes. No meio de tanta beleza infeliz, entretanto, certo dia uma
coisa inesperada aconteceu. Uma florinha, que estava crescendo dentro de um
botão, e que deveria ser igualmente bela e infeliz, cortou uma de suas pétalas
num espinho, ao nascer. A florinha nem ligou e vivia muito feliz com sua pétala
partida. Ela não doía. Era uma pétala macia. Era amiga.
Até que ela
começou a notar que as outras flores a olhavam com olhos espantados. E percebeu,
então, que era diferente. - Por que é que as outras flores me olham assim,
papai, com tanto espanto, olhos tão fixos na minha pétala...? - Por que será?
Que é que você acha?, perguntou o pai.
Na verdade, ele
bem sabia de tudo. Mas ele não queria dizer. Queria que a florinha tivesse
coragem para olhar para as vaidosas e amar a sua pétala.
- Acho que é
porque eu sou meio esquisita..., a florinha respondeu.
E ela foi ficando
triste, triste... Não por causa da sua pétala rachada, mas por causa dos olhos
das outras flores.
- Já estou cansada
de explicar. Eu nasci assim... Mas elas perguntam, perguntam,
perguntam...
Até que ela
chorou. Coisa que nunca tinha acontecido com as flores belas e
infelizes. A terra levou um susto quando sentiu o pingo de uma lágrima
quente, porque as outras flores não choravam. E ela chamou a árvore e lhe
contou baixinho: - A florinha está chorando. E a terra chorou
também.
A árvore chamou os pássaros e lhes contou o que
estava acontecendo. E, enquanto falava, foi murchando, esticando seus galhos num
longo lamento, e continua a chorar até hoje, à beira dos rios e dos lagos,
aquela árvore triste que tem o nome de chorão. E das pontas dos seus galhos
correram as lágrimas que se transformaram num fiozinho de
água...
Os pássaros voaram
até as nuvens. - Nuvens, a florinha está chorando.
E choraram
lágrimas que se transformaram em pingos de chuva... As nuvens choraram
também, juntando-se aos pássaros numa chuva enorme, choro do céu. As lágrimas
das nuvens molharam as camisolas dos anjinhos que brincavam no céu macio. E
quiseram saber o que estava acontecendo. E quando souberam que a florinha estava
chorando, choraram também...
E Deus, que era
uma flor, começou a chorar também. E a sua dor foi tão grande que,
devagarinho, como se fosse espinho, ela foi cortando uma de suas pétalas.
E Deus ficou tal e
qual a florinha.
E aquele choro
todo, da terra, das árvores, dos pássaros, dos anjos, de Deus, virou chuva, como
nunca havia caído. O sol, sempre amigo e brincalhão, não agüentou ver tanta
tristeza. Chorou também. E a sua boca triste virou o
arco-íris...
E as chuvas
viraram rios e os rios viraram mares. Nos rios nasceram peixes pequenos. Nos
mares apareceram os peixes grandes. A florinha abriu os olhos e se espantou
com todo aquele reboliço. Nunca pensou que fosse tão querida. E a sua tristeza
foi virando, lá dentro, uma espécie de cócegas no coração, e sua boca se
entortou para cima, num riso gostoso...
E foi então que
aconteceu o milagre. As flores belas e infelizes não tinham perfume, porque
nunca riam. Quando a florinha sorriu, pela primeira vez, o perfume bom da flor
apareceu. O perfume é o sorriso da flor. E o perfume foi chamando bichos e
mais bichos... Vieram as abelhas... Vieram os beija-flores... Vieram as
borboletas... Vieram as crianças. Um a um, beijaram a única flor perfumada, a
flor que sabia sorrir. E sentiram, pela primeira vez, que a florinha, lá dentro
do seu sorriso, era doce, virava mel...
Esta é a estória
do nascimento da alegria.
De como a tristeza
saiu do choro, do choro surgiu o riso e o riso virou perfume. A florinha não
se esqueceu de sua pétala partida. Só que, deste dia em diante, ela não mais
sofria ao olhar para ela, mas a agradava, como boa amiga. Quanto aos
regadores dos anjos, nunca mais foram usados. De vez em quando, olhando para
as nuvens, a gente vê um deles, guardado lá dentro, já velho e coberto de teias
de aranha... Enquanto a florinha de pétala partida estiver neste mundo, a chuva
continuará a cair e o brinquedo de roda em volta do seu sorriso e do seu perfume
não terá fim... (Rubem Alves)
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